sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

História e Historiografia

Entre a objetivação do sujeito e a subjetivação do objeto: considerações sobre a relação sujeito-objeto na operação historiográfica
GILBERTO CEZAR DE NORONHA
Trabalho apresentado à UFU - Universidade Federal de Uberlândia, como exigência parcial para a Conclusão da disciplina Historiografia do Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de História sob a orientação da Profª. Dr. Paulo Roberto de Almeida
UBERLÂNDIA, MG, 2004
Diante de tantas considerações sobre a crise dos paradigmas das ciências sociais e das questões que se colocam às práticas do historiador, a cada proposta de trabalho impõe-se, ainda de maneira mais urgente, a retomada dos caminhos do fazer histórico na tentativa de localizar o lugar social, expressão de Certeau, de onde emergem nossos questionamentos à realidade. É nesse sentido que, neste texto, procurarei pensar minha proposta de pesquisa, a partir de algumas considerações sobre o trabalho do historiador - que tem a pretensão de ser um conhecimento “racional válido a partir de proposições que se referem ao mundo objetivo das coisas, ao mundo social das normas e ao mundo subjetivo das vivências e emoções” (Rouanet: 2004, p.339).
Iniciemos como algumas considerações filosóficas. Permitam-nos considerar, pois, um sujeito e um objeto distintos. Esses dois seres distintos, apesar de sua existência individual independente, podem relacionar-se um com o outro, com outros seres, ou ainda relacionar-se com outros sistemas de relação entre seres que não o considerado. O objeto considerado é um ser real que existe independente do sujeito. Num processo de abstração, o sujeito apreende o objeto, através dos sentidos, formando um conceito ou idéia do mesmo. O conceito do objeto apreendido constitui-se em função da ação (de apreensão) do sujeito sobre o objeto. A partir de então, o conceito existe distintamente do objeto que lhe deu origem.Tal conceito formulado pelo sujeito, em decorrência de sua relação com o objeto, pode ser classificado quanto à sua coincidência ou não com a realidade objetiva. Quando o conceito está em conformidade com o objeto (a realidade da qual surgiu), estabelece-se a verdade.


A considerar os elementos acima como ponto de partida para pensar o trabalho do istoriador, este seria o sujeito e o seu tema (o que ele estuda) corresponderia ao objeto. O trabalho do historiador surgiria da sua relação com o tema (relação sujeito-objeto). Seria um trabalho simples (e simplificado) se essa relação sujeito-objeto não exigisse algumas observações. Em sua busca de apreensão do objeto de estudo, o historiador pretende à verdade - quer produzir um conhecimento válido. Mas essa relação sujeito-objeto não ocorre de forma mecânica como tratada, e estes não podem ser tomados de forma dicotômica, e estáticos. É necessário considerar tanto a relação sujeito-objeto quanto a relação destes com outros sistemas inseridos em contextos diversos. Como nos lembra Thompson (1981: p.50), a relação entre o conhecimento histórico e seu objeto “não pode ser compreendida em quaisquer termos que suponham ser um deles função do outro (inferência, revelação, abstração, atribuição ou ilustração)”. É necessário ir além dos velhos mecanismos do conhecimento representativo para se compreender o trabalho do historiador na sua relação com seu objeto.


Em primeiro lugar, o historiador (o sujeito considerado) não é uma ‘consciência pura’ e, na sua relação com o objeto, sofre influências do meio em que vive. Como indicou Certeau, a pesquisa historiográfica se articula em um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural. “É em função desse lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhe são propostas, se organizam (Certeau: 2002, p.67). Ao falar de sua experiência, Hobsbawn nos fala do seu lugar social:

meu próprio poleiro é constituído, entre outros materiais, de uma infância na Viena dos anos 20, os anos da ascensão de Hitler em Berlim, que determinaram minhas posições políticas e meu interesse pela história, e a Inglaterra, especificamente a Cambridge dos anos 30, que confirmaram ambos. Sei que, provavelmente em grande parte devido a essas coisas, meu ângulo de visão é diferente do de outros historiadores que partilham ou partilharam de minha marca de interpretação da história e trabalharam no mesmo campo, digamos - a história do trabalho do século XIX. (Hobsbawn: 2000, p.247)

Na relação sujeito-objeto, portanto, devem ser acrescentadas as relações que o sujeito estabelece com seu contexto, no presente do qual sofre influências desde a escolha do objeto de pesquisa, da forma como se relaciona com ele (método de apreensão) e da forma como produz seu trabalho a partir dessa relação, que "só pode ser compreendida como um diálogo" (Thompson: 1981, p. 50).

Mas qual é o objeto da história? Em última instância o historiador lida com o passado. Mas como se dá essa relação? Poderá o historiador retornar ao passado para descrevê-lo como realmente aconteceu? A intenção do historiador é retratar a realidade histórica tal como ela se apresenta? Teria ele condições de apreendê-la objetivamente? “Não existe outra máquina de voltar no tempo senão a que funciona em nosso cérebro, com materiais fornecidos por gerações passadas” (Bloch: 2001, p.74). Materiais e testemunhos (evidências, para Thompson) que proporcionam ao historiador uma relação indireta com seu objeto de pesquisa. Para Bloch, o objeto do historiador não seria propriamente o passado (ontológico), uma soma unitária do comportamento humano. Seria o próprio “homem no tempo”. (Idem:p.54). Para Thompson, o historiador seleciona aspectos dessa realidade ontológica (o passado ou a história ‘real’, relaciona esses aspectos com outros (ações e relações) que dando origem a modificações - constituem um processo histórico - objeto de investigação racional.


Certas concepções empiristas de história acreditavam na possibilidade de apreensão da realidade objetiva pelos sentidos, não por uma volta ao passado, mas através dos 'documentos', os registros históricos que eram encarados como uma representação fiel da realidade objetiva. Nessa concepção, o trabalho do historiador consistiria, portanto, em apreender essa realidade documental empiricamente, sem julgamentos nem interferências, retratando fielmente a dita realidade. Essa história seria verdadeira (em conformidade com a história ‘real’) e a sua escrita seria definitiva.

Essa corrente era ludibriada pela complexidade do objeto. O documento (oficial ou verdadeiro) não é uma representação (entendida como reflexo) fiel do 'real', mas um produto circunstancial. O documento não garante a objetividade, pois ele não é reflexo do passado, é uma construção, ou como já se disse, um monumento (Le Goff: 1992, p.110). Essa constatação fez com que os historiadores repensassem seu trabalho, seu método e suas concepções. Mudaram as posturas diante do seu objeto. Ocorreu muitas vezes uma inversão e a importância, antes delegada ao objeto (tomado como os vestígios), foi transferida para o sujeito. Mais importante do que a realidade retratada (e talvez pela impossibilidade de retrata-la tal qual tinha sido), seria a interpretação da mesma pelo historiador, através de esquemas e modelos mentais interpretativos. Muitos historiadores ficaram presos a métodos e modelos e muitas vezes a própria ação dos sujeitos históricos aparece em plano secundário em relação a determinações estruturais, condicionantes dessa ação. Contra a razão iluminista do século XIX, surge a razão pura, uma crítica àqueles que pretendiam tratar as ‘ciências do homem’, ou do espírito, segundo analogias derivadas do paradigma das ciências naturais. Combate-se os materialismos, evolucionismos, mecanicismos, naturalismos e determinismos. Contra a impossibilidade de se garantir a objetividade no objeto, procurou-se garanti-la pelo método.

Thompson, um crítico do marxismo estruturalista de Althusser, denuncia a sobreposição da teoria à prática, ou o movimento de inversão de determinações do objeto às determinações do sujeito, de correntes marxistas:



A teoria está sempre recaindo numa teoria ulterior. Ao recusar a investigação empírica, a mente está sempre confinada aos limites da mente. Não pode caminhar do lado de fora. É imobilizada pela câimbra teórica e dor só é suportável se não movimentar seus membros. É esse (...) o sistema fechado. É o lugar onde todos os marxismos concebidos como sistemas teóricos auto-suficientes, auto-justificativos, autoextrapolantes, devem terminar. (Thompson: 1981, p.185)



É nesse sentido que Thompson alinha o marxismo que se pretende ciência (teoria) aos utilitários, malthusianos, positivistas, fabianos e funcionalistas estruturalistas (Idem: p.186).


A relação sujeito-objeto comporta diversas questões pinceladas irrisoriamente. Entre valorizar o objeto em detrimento do sujeito, ou o contrário, a historiografia atual tem repensado o trabalho do historiador em todas suas dimensões e implicações. Esta é mais do que uma opção pela realidade empírica o a idéia dessa realidade. Thompson, por exemplo, para vencer os desafios que se colocam nessa relação sujeito-objeto, propõe o estabelecimento de relações dialógicas entre conceptualização e confrontação empírica. Para tanto propõe a noção de experiência para ‘re-inserir o sujeito na história” - o homem. (1981: p.188),

Diante da tão propalada crise dos paradigmas das ciências sociais, nos fins do século XX, com o questionamento dos modelos interpretativos e das explicações globais, surgem outras tentativas de explicação da realidade social, e novas formas de compreender o trabalho do historiador. Para Chartier, essa crise seria de método: as práticas de pesquisa passaram de uma história global para as tentativas de abarcar o todo pela parte; de uma definição territorial dos objetos para a contextualização e da primazia do recorte social para a consideração de pluralidade de clivagens sociais, diversidade e emprego de materiais e códigos compartilhados (2002: p. 65)

Em seu trabalho, o historiador lida com pelo menos três questões fundamentais: a questão da apreensão do objeto, questões advindas de seu lugar social e diríamos, questões estéticas de seu trabalho. Questões que representam dimensões que compõem o ofício do historiador. Trataremos das duas primeiras: A relação sujeito-objeto é determinada pelas concepções que o sujeito historiador tem sobre história, sua vivência que determina seu olhar sobre o objeto. A tentativa de uma explicação global do passado, como nos indica Fontana (1998: p.274), teria sido abandona a partir da contestação das concepções de mundo que guiavam o olhar do historiador sobre o seu objeto: o modelo de progresso capitalista e/ou socialista. Isso nos confirma o que Bloch na década de 40 já dizia sobre a relação do historiador com o passado, que se estabelece a partir das suas experiências cotidianas e que são destas que se retiram os elementos para compreendê-lo. (Bloch:2001, p.54). Para Fontana, colocar em dúvida essa linearidade da história, esse olhar para o passado como uma etapa para o que está no presente e para um futuro já pensado, nos deixa a possibilidade de pensar em outras alternativas que não preponderaram, mas que existiram. Para ele, temos que elaborar

uma visão da história que nos ajude a entender que cada momento do passado não contém apenas a semente de um futuro pré-determinado e inescapável, mas sim a de toda uma diversidade de futuros possíveis, um dos quais pode acabar convertendo-se em dominante, por razões complexas, sem que isso signifique que é o melhor, nem, por outra parte, que os outros estejam totalmente descartados. (Fontana:1998, p.275)


É nesse sentido que se pode compreender a história como um campo de possibilidades. A revisão das relações sujeito-objeto, e as questões que têm se colocado para em nosso tempo, nos possibilita pensar em outras formas de compreensão do fazer histórico. Pensar as relações entre as dimensões temporais com as quais o trabalhador lida, nos remete às questões da memória e da história. Ao ser questionado o paradigma do progresso linear da história, abrem-se possibilidades de questionarmos o que conservamos do passado e quais ações esse passado (enquanto fragmento) corroboram o presente ou projetam o futuro.Assim, o olhar do historiador para o seu objeto deve ser interrogado. Quais são os projetos que nos guiam nessa nossa relação com a história 'real'?


A complexidade do objeto, nessa relação também deve ser considerada. Não é possível isolar aspectos do passado e analisá-lo fora de seu lugar. Para Thompson a história é uma disciplina do contexto e do processo: todo significado é um significado dentro-de-um-contexto e, enquanto as estruturas mudam, velhas formas podem achar sua expressão em novas formas.Assim, o problema de uma explicação geral ou particular, ou as maneiras de abarcar o todo pela parte parece ser superado com a noção de cultura que Thomspon desenvolve - noção com a qual procura abarcar a totalidade do social a partir da vida material. Outros historiadores, como o próprio Chartier, com formações diferentes, procuram essa totalidade do social a partir das determinações da sociedade, em representações sociais. O que se estabelece nas novas formas de se ver a complexidade do objeto é a tentativa de se superar as dicotomias dos estruturalismos (modelos de base-estrutura). O ponto de onde se parte é diverso (do material ou do simbólico). Essas escolhas dizem respeito às orientações do sujeito, pelas quais tem reconhecido essa complexidade.

Ao pensar minha proposta específica de pesquisa[1], retrospectivamente, tenho consciência que muitas das dificuldades que tenho enfrentado nessa empreitada dizem respeito a muitas dessas questões. Penso que será necessário retomar as relações que estabeleci com o objeto de pesquisa.Compreendo que, na tentativa de problematizar as relações entre história e memória a partir do estudo sobre os usos e significados da história e da memória de Joaquina do Pompéu, fui ludibriado pela complexidade de meu objeto. A escolha da lembrança específica de Joaquina do Pompéu, como uma evidência do passado que me interessava (como objeto), muitas vezes pareceu sobrepor-se às ações dos sujeitos que dela lembram. A forma como coloquei a questão deixava a impressão de que meus objetivos eram fazer uma lista de formas e significados com os quais as pessoas lembravam desse sujeito histórico. Ficava a impressão de que o que me interessava nos grupos que me propunha a pesquisar, era somente o significado pronto - fixo - e não o processo de elaboração, as práticas desses sujeitos e/ou desses grupos que em suas ações e vivências elaboravam de tais formas a lembrança de Joaquina do Pompéu. Eu havia percebido que lembrar dessa fazendeira que viveu numa região específica de Minas Gerais, nos fins do século XVIII e início do século XX, era para esses grupos era uma forma de luta em seu presente, mas ao congelar o processo de atribuição de significados, e a leitura do passado por esses grupos, a partir de uma lembrança comum, havia tomado uma das formas de expressão da luta de memória - a figura de Joaquina do Pompéu - em detrimento da própria luta e dos sujeitos que a travam. Retomando a trajetória que me fez chegar a essas preocupações, penso poder melhor elabora-las, não para mudar meu tema de pesquisa (objeto), mas redirecionar meu olhar sobre ele, procurando restabelecer o diálogo.

Quando entrei em contado com o que comumente se considera a história de Minas, como sujeito histórico, percebi que a memória construída pela história oficial (de Minas e do Brasil), conflitava com minhas lembranças pessoais. Naquele momento eu constatava:

Estudando a História de Minas e verificando a produção historiográfica sobre o desenvolvimento de Minas Gerais nos Séculos XVIII e XIX, observa se uma lacuna no que se refere ao povoamento das regiões onde não se desenvolveu a Mineração. Sobre esse tema verificam-se duas vertentes que mantêm pouca ou nenhuma relação: de um lado desenvolveu-se uma vasta historiografia sobre o desenvolvimento das regiões ligadas diretamente ao ouro e de outro, produziram-se trabalhos isolados de determinadas regiões ou municípios numa história dita 'regionalista’: factual, tendente a formar mitos e privilegiar a evolução política[2]


Reconheço que procurava identificação com a memória histórica oficial. Inconsciente, buscava minha identidade, encontrava apenas alguns memorialistas que curiosamente manifestavam as mesmas inquietações minhas. Reivindicavam uma história dessa região (Alto São Francisco). A história que não retratava essa região acompanhava a riqueza econômica, os chamados ciclos, e a partir da decadência do ouro, deslocava sua atenção para o ciclo do café, em São Paulo e sul de Minas. Uma história tradicional instituinte da memória oficial. Muitos desses autores tentavam fazer uma história de uma região relegada pela história oficial tradicional. Parecia não haver nenhuma relação de nossa história regional. Desse modo, concluía:


Assim, deparamo-nos com duas histórias de Minas no período tratado (fins do século XVIII e início XIX): a História de Minas, tida como a região do ouro (apogeu e decadência) e a História de Minas fragmentada - a história das pequenas cidades de Minas que as retratava como pequenos feudos e que não consideram e não a inserem nos processos mais amplos da história do Brasil. (Idem)

Curioso foi perceber que nessa história oficial e nos memorialistas que procuravam escrever uma história, e reivindicavam uma memória, aparecia uma figura local: Joaquina do Pompéu. Intuitivamente, interessei-me por essa figura (que já conhecia, pelas histórias que o povo contava, pelas ruas e praças que trazem seu nome, pelos seus descendentes). Ao perceber que Joaquina era lembrada por essa historiografia tradicional (pela memória oficial do Brasil), vi a possibilidade de identificação com essa história que não falava de meu povo, de minha região, dos processos que estabeleceram o presente, os problemas e questões de nosso cotidiano. Assim, Joaquina do Pompéu, parecia o elo, o vínculo dessa identificação. E escrevia:



O elo de ligação entre o desenvolvimento do Alto São Francisco e das regiões Mineradoras é o homem: que sai da região mineradora pelo declínio da produção aurífera procurando novas alternativas sendo que na maioria das vezes a pecuária é atividade desenvolvida. Assim, esses dois processos fazem parte do amplo processo de exploração promovido pelos colonizadores do Brasil. Com a decadência do ouro, parte da população sai dessas regiões e procura novas alternativas econômicas: “De todas as vilas do ouro, de todos os arraiais de mineração tem início ( em fins do século XVIII) uma imensa imigração para pontos mais afastados do sertão. É quando as fazendas de gado vão surgindo e vão povoando todo o Alto São Francisco”.(Ibidem)

Quando conheci a aldeia de índios Kaxixó, no Município de Martinho Campos, entrei em contato com algumas de suas histórias, minha surpresa foi quanto o Cacique, ao contar a história de seu povo remete-se à Joaquina do Pompéu com um grande ressentimento. A lembrança de Joaquina do Pompéu parecia significar para o índio, não um elo de ligação de sua história pessoal e a história do ‘povo’ brasileiro, sentimento que eu mesmo experimentava. para ele era o contrário, essa figura parecia ligada a uma ruptura entre a história de seu povo e sua própria história. Os índios estão em processo de reconhecimento e demarcação de terras, lutando pela demarcação de sua reserva.Lembrar de Joaquina do Pompéu, nesse caso, o identificava mais ao seu grupo (os índios) que não existem mais em sua cultura. Para ele essa figura era parte de uma das poucas coisas que diferencia seu grupo de outros pobres que vivem em comunidades rurais hoje, na região: o seu passado.


No mesmo ano (2002), foi realizada uma grande festa em Pompéu - MG, para comemorar os 250 anos de Joaquina do Pompéu, festa imprimida pelos seus descendentes que festejam Joaquina como o elo de ligação entre os habitantes do Alto São Francisco e o Brasil: encontrara, talvez, o elo que eu procurava. A partir dessas constatações, procurei compreender melhor os processos de lutas que se travam hoje, em torno da lembrança dessa fazendeira. Como explicitei no pré-projeto, Joaquina do Pompéu interessava-me menos pelo que ela foi, mais pelo que representa hoje para os grupos que dela lembram. Dessa forma eu queria partir do presente, compreender as lutas que se travam, em disputas que vão além da disputa por sua memória, pela significação de sua memória numa disputa no presente, em busca de sentido e legitimidade no passado. As minhas preocupações eram essas lutas mesmo, que se dão ainda no presente, lutas que não se encerram aqui, iniciaram-se com a chegada do branco, com as ações do passado e com a disputa pela memória dessas ações, hoje. Portanto, procurava formas de abarcar essas disputas. Lutas de indivíduos que procuram se inserir em grupos, lutas entre os grupos, que adquirem um sentido mais amplo. É procurando apreender esse processo histórico, problematizando o presente, que propus o estudo dos usos e significados da História e da Memória de Joaquina do Pompéu.

Eleger uma figura que muitas vezes adquire dimensão mítica pareceu-me, naquele momento, importante para localizar e identificar alguns possíveis campos de luta entre esses grupos. Reconheço que acreditava que compreender a figura de Joaquina possibilitaria compreender o passado. Este seria meu objeto, a minha evidência, o vestígio do passado que é um dado que não se modifica - a história real. Mas é necessário também pensar nessa minha escolha do objeto, da evidência. Penso na impressão que Samuel descreve ao ver fotografias antigas do século XIX e seu alerta de como devemos ver uma imagem (considerando também que a memória é imagética acredito ser possível a analogia imagem-lembrança/fotografia):

O poder dessas figuras é o contrário do que elas parecem. Podemos pensar que nos encaminhamos a elas, em busca do conhecimento do passado, mas é o conhecimento do passado que nos leva a elas, que as faz historicamente significantes, transformando uma oportunidade residual maior ou menor do passado em um precioso ícone. (Samuel: 1997, p. 60)

O autor fala sobre o perigo de se tomar essas imagens sem um método crítico, como uma transparência, como uma amostra do passado 'como foi'. Dentre os procedimentos metodológicos que indica para se evitar tal ação, propõe perguntar por que uma figura (no seu caso específico, fotografias) é, em termos contemporâneos atraente. Essa questão deve primeiro ser dirigida a mim. O que me levou a essa figura? Num primeiro momento o que me chamou a atenção foi, diante de tão pouco registro sobre o passado da região do Alto São Francisco, uma figura era lembrada por diversos grupos, tinha registros, tinha evidências de sua trajetória e ao mesmo tempo se apresentava como uma evidência, ela própria.
Marc Bloch já advertia que



os documentos não surgem aqui ou ali, por efeito de não se sabe qual misterioso dos deuses. Sua presença ou ausência em tais arquivos, em tal biblioteca, em tal solo deriva de causas humanas que não escapam de modo algum à análise, e os problemas que sua transmissão coloca, longe de terem apenas o alcance de exercício de técnicos, tocam eles mesmos nos mais íntimos da vida no passado, pois o que se encontra assim posto em jogo é nada menos do que a passagem da lembrança através das gerações (Bloch:2001, p.83)

Penso agora que, ao invés de discutir os usos e significados que a figura de Joaquina do Pompéu adquire para este ou aquele grupo, ou para mim mesmo, devesse voltar-me para a própria história desses grupos que dentre várias práticas e lutas, na sua experiência vivida, de derrotas e vitórias, escolhas e limitações, produziram diversos materiais e símbolos. Receberam, transmitiram e lembram de Joaquina do Pompéu. Acredito que procedendo assim, resolverei pelo menos o principal dos problemas: estarei trazendo meu trabalho para onde "há carne humana", e quem sabe encontrar minha caça (Idem: p.54). Quem sabe fugir das armadilhas do 'objeto'. Ser realmente sujeito da história e tratar aqueles que me precederam também como sujeitos e não como objetos estáticos, como sugere a palavra do binômio sujeito-objeto.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: A história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: ed. da UFRGS, 2002.

FONTANA, Josep. Reflexões sobre a história do além do fim da história. In: História; análise do passado e projeto social. São Paulo: EDUSC, 1998.

HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi v.1. Memória/história, Imprensa Nacional: Casa da Moeda, 1984.

ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

SAMUEL, Rafael. Teatros da Memória. In: Revista Projeto História, n°14, EDUC, 1997.
THOMPSON, E.P. A Miséria da Teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

NOTAS:


[1] Remeto-me ao pré-projeto de pesquisa apresentado para admissão no Programa de Mestrado em História Social na Universidade Federal de Uberlândia que tinha como título “Terra, gado e poder: Usos e significados da história e da memória de Joaquina do Pompéu, na historiografia e no imaginário popular”. (Mimeo.)
[2] Trecho de um trabalho de pesquisa que realizei sobre a expansão da pecuária no Alto São Francisco: NORONHA, Gilberto Cezar de. O avanço expansionista e desenvolvimento da pecuária no Alto São Francisco em fins do século XVIII e início do século XIX, no contexto da colonização do Brasil. LUZ/MG: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Alto São Francisco, 2002. (Mimeo.)